terça-feira, 27 de junho de 2023

São Cirilo de Alexandria


    Doutor da Igreja e Padre Grego, este Patriarca (ou Bispo) de Alexandria também tem os títulos de 'Pilar da ' e 'Selo dos Padres', pela iluminada defesa que fazia das decisões tomadas nos Concílios, demostrando grande amor à Sagrada Tradição.
    Era sobrinho de Teófilo, também Patriarca de Alexandria, que desde cedo cuidou de oferecer-lhe a mais apurada educação, clássica e teológica. E é muito provável que tenha vivido em algum monastério, o que se deduz tanto por indicações documentais como pela importância que essas instituições tinham para a religiosidade cristã ao seu tempo, principalmente entre os egípcios.
    Aos 28 anos, em 403, foi ordenado leitor em Alexandria, para auxiliar seu tio, e começou a desempenhar funções cada vez mais importantes na hierarquia da Igreja. No mesmo ano viajou com ele para Constantinopla, então a sede do Império Romano, onde foi realizado o Sínodo do Carvalho para por fim à heresia dos seguidores de Orígenes, defensor da teoria da apocatástase, segundo a qual o Verbo seria distinto do Cristo, isto é, Jesus não seria perfeitamente igual ao Pai, rompendo assim com a noção da Santíssima Trindade. Também defendiam que até aqueles que estão no inferno seriam redimidos num capítulo final posterior ao Apocalipse, numa restauração de todas coisas em sua absoluta unidade com Deus.
    Esse Sínodo, porém, também resultou no afastamento de São João Crisóstomo do patriarcado do Constantinopla, injustamente acusado de origenista e de dar abrigo a estes heresiarcas. Este Santo, em sua peculiar resignação, sequer atendeu às convocações para defender-se, pois sabia que confessos adversários seriam seus juízes, como Severiano de Gabala, o promotor das acusações, a quem São João Crisóstomo havia banido de Constantinopla por conspiração. Levado pelas aparências, São Cirilo acabou apoiando esta decisão do Sínodo, mas em 417 iria desfazer tal injustiça numa intensa troca de correspondência com São João Crisóstomo, inclusive citando seus escritos em vários sermões por considerá-los a mais perfeita Ortodoxia Católica.
    Após a morte de seu tio, São Cirilo foi eleito Patriarca de Alexandria em uma conturbada disputa, e acabou assumindo responsabilidades que iam além de suas funções na Igreja. Delegou os serviços de caridade aos 'parabolani', membros de uma então já secular fraternidade católica que se haviam comprometido de cuidar dos doentes e enterrar os mortos por ocasião da grande praga de Alexandria, ocorrida na segunda metade do século III. Esse nome significava que eles tinha uma digna das parábolas de Jesus, capazes de exposição a contagiosas doenças sem nenhum temor.


UMA CIDADE EM CONVULSÕES

    São Cirilo retomou para a Igreja várias comunidades administradas pelos novacianistas, que era outra heresia, expulsando-os de Alexandria. Esse grupo isolacionista, auto-intitulado 'puritanos', era seguidor das teses de Novaciano, um padre do século III que aceitou ser irregularmente eleito Papa em oposição ao Papa Cornélio, tornando-se o primeiro antipapa. Ele teimosamente divulgava que aqueles que renegaram a fé e prestaram culto aos deuses pagãos durante as perseguições comandadas pelo imperador Décio, no ano de 250, não mereciam ser mais uma vez perdoados, pois teriam desonrado o sangue dos mártires.
    Além de cristãos e pagãos, Alexandria era habitada por judeus, que desde o século III antes de Cristo já haviam feito dela sua principal referência econômica e intelectual. Eram, portanto, parte tradicional dessa sociedade, onde tinham um expressivo número de habitantes e por alguns séculos já gozavam de oficiais privilégios, previstos em leis.
    Durante uma de suas festividades, porém, eles acusaram Hierax, um exaltado monge católico, íntimo de São Cirilo, de incitar os cristãos em tumultos contra si, e por isso Orestes, prefeito do Egito que invejava a grande influência do Santo Patriarca e de outros bispos, inflamado pelos judeus, prendeu, torturou e em público executou este monge.
    São Cirilo reagiu contundentemente: promoveu um encontro com os principais dos judeus e acusou-os de assassinato. Como resposta, raivosos judeus provocaram uma noite de matança de cristãos, atraindo-os aos gritos para uma grande igreja, fazendo alarde de que havia um princípio de incêndio. Temendo uma violenta reação da parte dos cristãos, nosso Patriarca lançou mão de sua autoridade e resolveu expulsar muitos dos judeus da cidade.
    Realmente não era fácil controlar as várias facções cristãs dessa grande metrópole, menor apenas que Roma e Constantinopla. E como Orestes recorreu ao imperador contra a expulsão dos judeus, alguns monges nitrianos apedrejaram sua comitiva, acusando-o de paganismo e ferindo-lhe na cabeça. Amônio, o monge que o teria atingido, foi capturado e também torturado até a morte, mas Cirilo mandou que recolhessem seu cadáver e, em consideração ao seu histórico, tratou-o como mártir, o que provocou novos atritos com o prefeito.
    Grupos cristãos também dividiam-se em relação ao comportamento de uma filósofa neoplatonista, Hipátia, que professava ateísmo e, supostamente, estaria influenciando as decisões de Orestes, seu ex-aluno. Entre as convulsões que aconteciam na cidade, ela foi assassinada por radicais cristãos, comandados por Pedro, leitor da Igreja de Alexandria, portanto uma pessoa do círculo de São Cirilo, mas que não teve seu apoio, pois nosso Santo já tentava refazer as relações com o prefeito desde a expulsão dos judeus e nunca havia visto problema no comportamento desta estudiosa.


O CONCÍLIO DE ÉFESO

    A maior realização de São Cirilo de Alexandria talvez tenha sido sua decisiva participação no Primeiro Concílio de Éfeso, em 431, onde ele resistiu e derrotou outra corrente herética, esta comandada por Nestório, Patriarca de Constantinopla, que dizia que Nossa Senhora não seria 'Mãe de Deus', mas apenas 'Mãe de Cristo', pois não reconhecia a natureza divina de Jesus, apenas a humana. E como prova do espírito conciliador de nosso Santo Patriarca, temos as cartas que ele já lhe endereçava anos antes, tentando demonstrar-lhe a verdadeira Doutrina Cristológica: "Afirmamos, assim, que são diferentes as naturezas que se reuniram numa verdadeira unidade, mas de ambas derivou um único Cristo e Filho, não por ter sido eliminada por causa da unidade a diferença das naturezas, mas sobretudo porque a divindade e a humanidade, reunidas em indizível e inenarrável união, produziram para nós o único Senhor, Cristo e Filho."
    Mas a troca de correspondência de São Cirilo e Nestório com o Papa Celestino I, sobre este assunto, já havia levado o Sumo Pontífice a pronunciar-se a favor de São Cirilo, concedendo-lhe direitos para cassar o episcopado de Nestório e prescrever-lhe arrependimento e penitência.
    O Imperador Teodósio II, no entanto, que por vizinhança era mais inclinado ao patriarcado de Constantinopla, convocou, por certo a pedido de Nestório, o Concílio de Éfeso para resolver a questão. E por astúcia, Nestório foi o primeiro a chegar, embora não tenha conseguido amealhar o apoio nem do povo nem de Menon, bispo da cidade, que se regia pela decisão do Papa e por isso aguardava a chegada de São Cirilo com todas igrejas de portas fechadas, para evitar que Nestório tentasse difundir suas ideias, como de fato tentou.
    Ao chegar, já contando com a presença de duzentos bispos e visando resolver o impasse para acalmar a cidade, São Cirilo iniciou o Concílio antes da chegada de João de Antioquia, que era a quarta cidade mais importante à época, e também antes da chegada dos representantes do Papa e demais bispos do Leste, pois deles já tinha apoio e a viagem poderia durar várias semanas. Invocando meras formalidades, o representante do imperador e outros bispos reclamaram, e por isso foram excluídos do Concílio. Quanto a Nestório, recusou-se a comparecer mesmo após o envio de quatro bispos para convocá-lo, aos quais sequer recebeu. Sem opositores, a decisão foi unânime, aceitando as cartas de São Cirilo como de acordo com os Concílios e com os Padres da Igreja. A Nestório, por fim, foram declaradas a deposição e a excomunhão.
    Com a chegada de João de Antioquia, ele reuniu-se com Nestório e Candidiano, que representava o imperador, e declararam em 'outro concílio' a condenação de São Cirilo e Menon. Estes, no uso de suas autoridades, responderam de imediato com a deposição também de João de Antioquia. Assim a cidade tornou-se cenário de violentos conflitos, pois Candidiano tentou à força reabrir as igrejas, usando as tropas imperiais, mas acabou não conseguindo por resistência da própria população.
    Teodósio II, que era cristão desde o seio de sua família, tentou reunir representantes dos dois lados, num local próximo à cidade, mas, como nenhum deles cedia, o imperador ameaçou depôr João, Menon e São Cirilo, e deteve-os sob sua custódia, aguardando que se entendessem.
    Com a chegada do Legado Papal, porém, corroborando as condenações contra Nestório e inocentando São Cirilo, Teodósio II libertou-o, como também a Menon e a João de Antioquia para que enfim pudessem retornar a seus patriarcados. Dois anos depois, João de Antioquia chegou a um acordo com São Cirilo, e Nestório, que não voltava atrás em suas posições, foi condenado ao exílio.
    Enfim, com a morte do Papa Celestino I, em 432, Sisto III foi eleito, confirmou a decisão do Concílio Éfeso e fez com que João de Antioquia voltasse a relacionar-se com o Santo Patriarca de Alexandria.


    São Cirilo escreveu profusamente, entre cartas, sermões e tratados doutrinários, e dentre estes elogiáveis defesas da trinitária fé. Fez importantes comentários a muitos sagrados livros, como todo Pentateuco, Isaías, os Salmos e os Evangelhos de São João e de São Lucas. Exemplo de absoluta fidelidade à Ortodoxia Católica, ele evocava com frequência a obra de Santo Atanásio.
    São de seus textos:

    "Meu maior anseio é trabalhar, viver e morrer pela fé em Cristo."
    "Propus-me afrontar qualquer trabalho pela fé em Cristo, suportar quaisquer tormentos, até mesmo os que se enumeram entre os mais graves suplícios, a ponto de aceitar, enfim, com agrado, a morte por esta causa."
    "Portanto, não me comove nenhuma injúria, nenhum ultraje ou afronta… Apenas importa que a fé se conserve íntegra e salva."
    "Pois se temermos pregar a Verdade pela Glória de Deus, para não sofrermos algum incômodo, pergunto: de que modo celebraremos diante do povo os combates e triunfos dos santos mártires?"
    "Isto é importante: Deus é eterno, nasceu de uma mulher e conosco permanece todos dias. Vivemos com esta confiança, e nela encontramos o caminho de nossa vida."
    "Realmente, se Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus, porque motivo não pode ser chamada de Mãe de Deus a Santíssima Virgem que O gerou?"
    "Salve, ó Maria, Mãe de Deus, Virgem e Mãe, Estrela e Vaso de Eleição! Salve, Maria, Virgem, Mãe e Serva: Virgem, na verdade, por virtude d'Aquele que nasceu de ti; mãe por virtude d'Aquele que cobriste com panos e nutriste em teu seio; serva, por Aquele que amou de servo a forma! Como Rei, quis entrar em tua cidade, em teu seio, e saiu quando Lhe aprouve, para sempre cerrando Sua porta, porque concebeste sem concurso de varão, e foi divino teu parto."
    "Por ti (Maria), os Apóstolos pregaram aos povos a doutrina da Salvação; por ti, a Santa Cruz é louvada e adorada no mundo inteiro; por ti, os demônios são afugentados e o homem chamado de novo ao Céu; por ti, toda criatura, detida pelos erros da idolatria, é reconduzida ao conhecimento da Verdade; por ti, os fiéis chegaram ao Batismo, e em toda parte do mundo foram fundadas igrejas."
    Cristo “forma-nos à Sua imagem, de modo a fazer brilhar em nós os traços de Sua divina natureza, mediante a santificação, a justiça, e a retidão de uma vida conforme à virtude... Assim, a beleza desta incomparável imagem resplandece em nós, que estamos em Cristo, e revelamo-nos pessoas de bem por nossas obras."
    "De fato, é plenitude de qualquer bem que Deus habite entre nós através do Espírito."
    "O Salvador chama Água a Graça do Espirito Santo, e se alguém d'Ele participar, terá em si mesmo a nascente dos divinos ensinamentos, de forma que não terá mais necessidade de conselhos dos outros, e poderá exortar todos que tem sede da Palavra de Deus."
    "Jesus chama Água Viva o vivificante dom do Espirito, o único através do qual a humanidade, apesar de ter sido completamente abandonada, como os troncos nos montes, seca e privada de todas as espécies de virtudes, devido às insídias do diabo, é restituída à antiga beleza da natureza..."
    "Assim como a raiz faz chegar aos ramos sua natural seiva, também o Unigênito de Deus concede aos homens, sobretudo aos que Lhes estão unidos pela fé, Seu Espírito. Ele conduz-lo à perfeita santidade, comunica-lhes a afinidade e parentesco com Sua natureza e a do Pai, alimenta-os na piedade e dá-lhes a Sabedoria de toda virtude e bondade."
    "De fato, o mistério de Cristo corre o risco de ser desacreditado precisamente porque é incrivelmente maravilhoso."
    "É recebendo o Corpo de Cristo, que recebemos a força da unidade com Deus, e de uns com os outros."
    "Como dois pedaços de vela fundidos formam um, então aquele que recebe a Sagrada Comunhão está tão unido a Cristo que Cristo está nele e ele está em Cristo."
    "Aquele que recebe a Comunhão é santificado e divinizado na alma e no corpo, da mesma forma que a água, colocada sobre o fogo, torna-se fervente... A Comunhão funciona como levedura que foi misturada em massa para que levede toda massa..."
    "O Corpo de Cristo dá a Vida a todos que dele participam; repele a morte dos que a Ele estão sujeitos e libertá-los-á da corrupção, porque em Si mesmo possui a força que a elimina plenamente."
    "Assim que Cristo entra em nós com Sua própria Carne, nós revivemos inteiramente; é inconcebível ou, mais ainda, impossível, que a Vida não faça viver aqueles nos quais Se introduziu. Tal como se cobre um ardente tição com um monte de palha, para manter intacto o germe do fogo, assim Nosso Senhor Jesus Cristo esconde a Vida em nós por Sua própria Carne, e aí coloca como que uma semente de imortalidade, que afasta toda corrupção que trazemos em nós."
    "Toda nossa vida é uma primavera, porque em nós temos a Verdade que não envelhece. E essa Verdade anima toda nossa caminhada."
    "É como empregar uma pequena ferramenta em grandes construções, se usarmos a sabedoria humana na busca pelo conhecimento da realidade."
    "Concedei-nos a Paz, ó Senhor. Então admitiremos que tudo possuímos, e parecê-nos-á que nada falta àquele que recebeu a plenitude de Cristo."
    "Nosso Salvador foi ao banquete de casamento para santificar as origens da vida humana."
    "Convém que tenhamos os mesmos sentimentos uns para com os outros; se um membro sofre, todos membros sofrem com ele; se um membro é honrado, os demais alegrem-se com ele."

    Morreu em 444, aos 69 anos, após 32 anos à frente do patriarcado da revoltosa Alexandria.

    São Cirilo de Alexandria, rogai por nós!