quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

São João da Cruz


    Filho de um nobre que foi deserdado por casar-se com plebeia, e que logo viria a falecer, São João da Cruz viveu muito modesta infância. Natural da Espanha, da pobre vila de Fontiveros, sua dedicada mãe bem que tentou melhor sorte em outros lugares, mas sempre acabavam regressando.
    Em 1551, quando tinha 9 anos, mudaram-se para Medina del Campo, onde vai ajudar a mãe nos custeios da casa trabalhando como ajudante de carpinteiro, de alfaiate, de pintor, de entalhador e de sacristão. Mas sua inteligência era facilmente percebida, e o diretor do hospital acabou por contratá-lo como empregado pessoal ainda em sua adolescência. Assim, trabalhando durante o dia e estudando à noite, à luz de vela, aos 17 anos os jesuítas ofereceram-lhe um curso de Humanidades. O sofrimento dos doentes no hospital, porém, principalmente dos que sofriam de sífilis, ele nunca mais esqueceria.
    Completado os estudos em 1563, e reconhecido por sua maturidade e espiritualidade, sentindo o chamado de Deus para a vida religiosa, por amor a Nossa Senhora entra para a Ordem do Carmelo e pretende manter-se leigo, mas seus superiores não lhe permitem. Com louvor formou-se em Teologia na cidade de Salamanca, e em 1567 é ordenado Sacerdote, contudo fica profundamente desiludido com a vida de facilidades dos carmelitas de então.
    Tenta entrar na Ordem dos Cartuxos, que é essencialmente contemplativa, devotada à profunda guarda do silêncio, mas ao encontrar-se com Santa Teresa d'Ávila e saber de sua vontade de reformar a Ordem Carmelita, resolveu ficar e colaborar nesse projeto. Nascia aí a Ordem Carmelita Descalça, assim chamada por dispensar os sapatos de couro da época, de uso quase exclusivo dos nobres, e voltar ao uso das sandálias como parte do hábito.


    Foi quando mudou seu nome de frade, de João de São Matias para João da Cruz. Tinha 25 anos e um contagiante fervor religioso. Baseando-se na 'experiência do deserto', passou a rever os hábitos de disciplina e os princípios de sua congregação. Eleito reitor de uma pequena casa de formação de noviços no povoado de Duruelo, por sete anos diligentemente empregou seus conhecimentos, assim como exercícios espirituais e contemplativos, com relativo sucesso.
    É nesse período, quando Santa Teresa é eleita priora no Convento da Encarnação, na cidadela de Ávila, que ele é convidado para ser confessor das freiras da nova ordem, onde vai trabalhar por cinco anos. Aí pintou o célebre quadro 'Cristo na Cruz', que usava para contemplar. Já era reconhecido como Santo.
    Os carmelitas tradicionais, porém, desaprovam-no. Apesar de sua natural timidez, pelo rigor que imprimia em suas práticas e pela tenaz persistência foi considerado rebelde, perturbador da paz. Acabou ocultamente sequestrado e preso durante 9 meses num ínfimo cubículo, no Convento de Toledo, por monges contrários às suas propostas de reforma, que ele não se continha em anunciar. Tentaram de tudo para mudar suas ideias, inclusive físicas e psicológicas torturas. Sofreu frio no inverno e calor no verão, sempre com o mesmo hábito, que não lhe permitiam trocar.
    Bem aproveitou esse período, entretanto, para ainda mais meditar e escrever. Aí nasce a poética obra 'Cântico Espiritual'. Por conta da torpeza em que o mundo vive, dizia que sua missão, assim como a de Cristo, era: "Padecer e morrer." Revelava-se aí os rebentos daquele que seria reconhecido como um dos maiores místicos da Igreja! Aceitando qualquer sofrimento para anunciar o amor de Deus aos irmãos, provava que havia alcançado uma superior visão da realidade: a perfeita Comunhão com o Criador.


    Mas numa enluarada noite de agosto, o novo carcereiro, tocado por sua candente devoção, por compaixão deixou-o fugir. Agradecido, nosso Santo entrega-lhe uma cruz de madeira que ali mesmo entalhou, na pequeníssima cela, como um pedido de desculpas pelo trabalho que dera a todos. Escondeu-se no convento das carmelitas descalças, onde, felizes por vê-lo, preparam-lhe peras assadas com canela, sobremesa que a ele tanto deliciava. Bem acolhido num aposento à parte, as freiras iam ter com ele toda tarde, para ouvir suas inspiradas reflexões. Entretanto, como seu estado de saúde era realmente frágil, por dois meses foi entregue aos cuidados do administrador do hospital de Toledo.
    Com o sucesso da ordem descalça, é convidado para os mais elevados cargos, assim como para a preparação de aspirantes nas fundações de novos mosteiros. Contudo, em desacordo com suas diretrizes, logo se insurgiam opositores entre os novos superiores. Nas reuniões do Capítulo de Madrid, em 1591, foi publicamente anunciada sua destituição de todo e qualquer cargo. Oferecem-lhe uma vaga no convento de Segóvia, mas ele pede para servir como missionário no México e vai aguardar a resposta no convento de Peñuela, onde será 'esquecido'. Aí sofrerá uma grave inflamação na perna direita e terá fortes febres. Levaram-no a Úbeda, onde fora prior e ainda era amado por todos, porém a enfermidade era fatal.
    Em suas frequentes contemplações, era arrebatado em êxtases espirituais e tinha visões. Tentou traduzir tudo em palavras, e assim nos presenteou com belíssimas obras como 'Noite escura da alma', 'Subida ao Monte Carmelo', 'Chama viva de amor' e 'A justiça e o amor'. Mas a verdade é que enquanto se aprofundava na autêntica espiritualidade cristã, padecia cada vez mais e maiores incompreensões.


    Seus escritos, porém, com justiça conferiram-lhe o título de Doutor da Igreja. São suas pérolas:

    "Preservando as portas da alma, isto é, os sentidos, grandemente preservam-se e aumentam-se a tranquilidade e a pureza."
    "Mesmo carregado de grandes e molestas tentações, desde que sua razão e vontade nelas não consintam, o homem pode ir a Deus."
    "A constância de ânimo, com Paz e tranquilidade, não só enriquece a pessoa como muito a ajuda a melhor julgar as adversidades, dando-lhes a conveniente solução."
    "Renuncie aos desejos e encontrarás o que teu coração deseja."
    "A pessoa que está presa por algum afeto a alguma coisa, mesmo pequena, não alcançará a união com Deus, mesmo que tenha muitas virtudes. Pouco importa se o passarinho está amarrado com um grosso ou fino fio... sempre ficará preso e não poderá voar."
    "Não faça coisa alguma nem diga palavra alguma que Cristo não faria ou não diria, se encontrasse as mesmas circunstâncias."
    "Tem fortaleza no coração contra tudo aquilo que te mover ao que não é Deus, e sê amigo da Paixão de Cristo."
    "Queira torna-te, no padecer, algo semelhante a Este Nosso Grande Deus, humilhado e crucificado, pois esta vida só tem razão de ser se for para imitá-Lo."
    "Senhor, quero padecer e ser desprezado por amar a Vós."
    "Deus mais estima em ti que te inclines à aridez e a padecer por amor a Ele, que todas consolações, visões espirituais e meditações que possas ter."
    "Com Cristo padecer Seu Cálice, é a mais preciosa coisa..."
    "O que é que sabe, quem não sabe sofrer por Cristo?"
    "O amor não consiste em sentir grandes coisas, mas viver com grande simplicidade e sofrer pelo Amado."
    "Se queres chegar à posse de Cristo, jamais O procures sem a Cruz."
    "... aproxima-te de Cristo, com mansidão e humildade, segue-O até o Calvário e ao sepulcro."
    "Os divinos toques, que Deus faz na alma, animam e enchem de brio para padecer. Muito sofre a alma enquanto Deus vai ungindo-a e dispondo-a, a fim de uni-la a Si."
    "O Caminho da vida é de muito pouco barulho e pretensão, e requer mais mortificação da vontade que muito saber. Quem menos se agarrar às coisas e aos gostos, mais por ele avançará."
    "Se quiseres chegar ao santo recolhimento, mais que consentindo hás de ir negando."
    "É melhor vencer-se na língua que jejuar pão e água."
    "Mais que quantas obras possas fazer, de ti Deus prefere a pureza de consciência, ainda que no menor grau."
    "Não penses que muito trabalhar mais agrada a Deus que fazê-lo com boa vontade, sem apegos e humanos respeitos."
    "Somente vão tendo Sabedoria de Deus os que, como ignorantes crianças, caminham com amor em Seu serviço."
    "Deus nunca dá Sabedoria mística sem amor, pois é o próprio amor que a infunde."
    "A contemplação, mediante a qual o intelecto tem a mais alta noção de Deus, recebe o nome de teologia mística, vale dizer, secreta Sabedoria de Deus, porque também é incompreensível para a faculdade que a recebe."
    "Olhe que teu Anjo da Guarda nem sempre move o apetite a agir, se bem que sempre ilumine a razão. Portanto, não estejas à espera do gosto para praticar a virtude, pois basta a razão e o entendimento. Quando o apetite está posto noutra coisa, não dá lugar para que o Anjo o mova."
    "O Demônio fica muito satisfeito quando percebe que uma alma deseja receber revelações ou sente inclinações por elas, visto que neste caso se lhe oferecem muitas ocasiões e possibilidade de insinuar erros e de nelas destruir a ."
    "Como ao próprio Deus, assim teme o Demônio a alma que está unida a Deus."
    "A alma que vive na união de amor, nem sequer os primeiros movimentos lhe pertencem."
    "O Céu é firme e não está sujeito a geração. As almas que são de celestial natureza são firmes, não estão sujeitas a gerar apetites ou qualquer outra coisa, porque à sua maneira se parecem a Deus, que nunca muda."
    "Quando a alma se acha livre e de tudo purificada, em união com Deus, nenhuma coisa poderá aborrecê-la. Daqui se origina para ela, neste estado, o gozo de uma contínua Vida e tranquilidade, que ela nunca perde nem jamais lhe falta."
    "Se queres que em teu espírito nasça a devoção, e que o amor a Deus e o gosto pelas divinas coisas aumente, purifica a alma de todos apetites, apegos e pretensões, de modo a não te inquietares com nada de nada."
    "Se purificares tua alma de estranhos gozos e apetites, entenderás as coisas em espírito; e, se nelas negares o apetite, gozarás de sua verdade, nelas entendendo o que é certo." 
    "Quanto mais pura e excelente na fé é a alma, tanto mais caridade infundida por Deus possui; e quanto maior caridade nela reside, tanto mais Ele ilumina-a e comunica-lhe os dons do Espírito Santo, pois a caridade é o meio e a causa de tal comunicação." 
    "A enamorada alma é suave, mansa, humilde e paciente. A rude alma endurece-se em seu amor-próprio." 
    "A enfermidade de Deus não se cura senão com a presença de Deus. Porque a saúde da alma é o amor de Deus, e faltando-lhe esse amor, falta-lhe a saúde."
    "Deus não obra as virtudes numa alma sem sua cooperação."
    "A perfeição não está nas virtudes que a alma descobre em si, mas naquelas que Nosso Senhor nela vê, pois é uma carta fechada."
    "Não julgues que, por não luzirem no outro as virtudes que tu pensas, não será ele precioso aos olhos de Deus pelo que tu não pensas."
    "Abandona tudo que ainda te falta, e volta-te para a única coisa que consigo tudo traz: a santa solidão, acompanhada da oração e da santa e divina leitura, e aí persevera no esquecimento de todas coisas..."
    "Na tribulação, imediatamente recorre a Deus com toda confiança e serás fortalecido, iluminado e ensinado. Na consolação e na alegria, imediatamente recorre a Deus com temor e verdade, e não serás enganado nem envolvido pela vaidade."
    "Procura não te entristeceres tão depressa com as contrariedades do mundo, pois não sabes o bem que consigo trazem, nem como estão ordenadas nos juízos de Deus para a sempiterna alegria dos eleitos."
    "O homem não sabe bem alegrar-se nem bem condoer-se, porque desconhece a distância entre o bem e o mal."
    "Alegra-te por nem tu nem os outros te conhecerem."
    "Duplo trabalho tem o pássaro que pousou no visco: soltar-se e limpar-se. Também de duas maneiras pena quem satisfaz seu apetite: em primeiro lugar, dele libertar-se, e, depois, limpar-se do que se lhe apegou."
    "Por causa de passageiros prazeres, sofrem-se grandes e eternos tormentos."
    "Manso é quem sabe suportar o próximo e a si mesmo."
    "Quem não ama seu próximo, aborrece a Deus."
    "Quem se queixa ou murmura, não é perfeito nem sequer bom cristão."
    "Quem age com tibieza, está perto da queda."
    "Quem foge da oração, de todo bem foge."
    "Ter mais olhos para os bens de Deus que para o próprio Deus, é um grande erro."
    "Ao entardecer, examiná-te-ão no amor. Aprende a amar como Deus quer ser amado, e não olhes tua condição."
    "Procurai lendo, e encontrareis meditando. Chamai orando, e abrir-se-vos-á contemplando."
    "Quem poderá livrar-se destes modos e baixos termos, se não sois Vós, Meu Deus, a erguê-lo para Vós em pureza de amor? Como se elevará até Vós o homem gerado e criado em baixezas, se não sois Vós, Senhor, a deitar-lhe a mão com que o fizestes?"
    "Eu não Vos conhecia, Meu Senhor, porque ainda desejava conhecer e saborear coisas."
    "Que felicidade o homem poder libertar-se de sua sensualidade! Isto não pode ser bem compreendido, a meu ver, senão por quem o experimentou. Só então se verá claramente como era miserável a escravidão em que se estava."
    "Os velhos amigos de Deus dificilmente pecam contra Deus, porque estão acima de tudo quanto os possa levar a pecar."
    "Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor tornar aquele que ama semelhante ao amado."
    "O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que em fogo tudo converte."

    No dia 7 de dezembro soube por revelação que morreria no dia 14, e a todos avisou que nesse dia iria cantar as matinas no Céu. De fato, à meia-noite do dia 13, expirou dizendo as últimas palavras de Jesus: "Senhor, em Tuas mãos Eu entrego Meu espírito (Lc 23,46)." Alguém saiu correndo e gritando pelas ruas da cidade que o Santo do Carmo havia morrido, e, apesar da hora e da tempestade que caia, a população acorreu ao convento para velá-lo, forçando as portas até que abrissem.
    Parte de suas relíquias, que por muitos anos se mantiveram incorruptas, foram levadas para Segóvia, e são veneradas num convento que tem seu nome.


    Mas outra parte ficou mesmo em Úbeda, onde foi sepultado e fizeram um belo oratório em sua homenagem.


    São João da Cruz, rogai por nós!