sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Caridade


    A palavra caridade, em latim, é sinônimo de amor. Mas pelo largo e atual uso, criou-se uma sutil distinção entre elas, e caridade passou a designar atitude, gestos concretos do amor que se sente, quando verdadeiramente altruístico. Nos assuntos da Igreja, ela tem duas nuances: a caridade espiritual, no ato de rezar por alguém ou na consagração à vida religiosa, como exemplos, e a caridade material, na tradicional forma de esmolas, doações, assistência, trabalho voluntário etc.
    Ser 'caro' para com o semelhante, portanto, significa tornar-se de maior valor pela distinta Graça com que se dedica, ou por algum bem material que se oferece.
    Já no sentido teológico, o termo mais propriamente significa encarnar o salvífico amor, o amor de Salvação, isto é, por notória intervenção de Deus, em nossa humanidade viver o divino amor. Esse é o Mandamento de Jesus: "Dou-vos um novo Mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como Eu vos tenho amado, vós também deveis amar-vos uns aos outros." Jo 13,34
    Porém, num mundo de tantas e tão flagrantes injustiças, sejam pessoais ou sociais, o amado Papa Bento XVI deixou uma reflexão a ser feita. Convocando a um engajamento político de cristãos em defesa dos mais pobres, em sua Encíclica 'Caritas in Veritate', onde discorre sobre a verdadeira caridade, como o título diz, fez alusão a um pensamento de São Gregório Magno: "Não posso ‘dar’ ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que já lhe pertence por justiça."
    Grande teólogo, São Paulo com frequência falou da caridade. Seja para distingui-la, ao denunciar o racionalismo de certas 'economias': "Porém, a ciência incha, a caridade constrói." 1 Cor 8,1
    Seja para pontualmente conceituá-la: "A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Não é escandalosa. Não cuida de seus interesses, não se irrita, não guarda rancor, não suspeita mal. Não se alegra com a injustiça, mas com a Verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta." 1 Cor 13,4-7
    Ou para prever a efetividade de sua prática: "A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará." 1 Cor 13,8
    Ele destaca-a entre as virtudes teologais: "Por ora subsistem a , a esperança e a caridade - as três. Porém, a maior delas é a caridade." 1 Cor 13,13
    E indica-a como necessária atitude de um cristão: "Tudo que fazeis, fazei na caridade." 1 Cor 16,14
    Ou como essencial instrumento da fé: "Estar circuncidado ou incircunciso de nada vale em Cristo Jesus, mas sim a fé que opera pela caridade." Gl 5,6
    Ou ainda como razão de servir: "Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade como pretexto para servir à carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade..." Gl 5,13
    Foi este Santo que estabeleceu a autêntica meta de todo cristão: "... conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo entendimento, para que sejais cheios de toda plenitude de Deus." Ef 3,19
    E assim refuta toda heresia, pedindo pela Unidade da Igreja: "Para que não continuemos crianças ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens e de seus enganadores artifícios. Mas, pela sincera prática da caridade, cresçamos em todos sentidos, n'Aquele que é a cabeça, Cristo. É por Ele que todo o Corpo, coordenado e unido por conexões que estão a Seu dispor, trabalhando cada um conforme a atividade que lhe é própria, efetua esse crescimento, visando sua plena edificação na caridade." Ef 4,14-16
    Recomendava mesmo que, em casos de extrema necessidade, cuidássemos primeiro da Igreja, em manutenção à obra da Salvação: "Por isso, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos homens, mas particularmente aos irmãos na fé." Gl 6,10
    Aludindo a seus sofrimentos no esforço da evangelização, o Último Apóstolo pedia mútua compreensão: "Exorto-vos, pois, prisioneiro que sou pela causa do Senhor, que leveis uma vida digna da vocação à qual fostes chamados, com toda humildade e amabilidade, com grandeza de alma, mutuamente suportando-vos com caridade. Sede solícitos em conservar a unidade do Espírito no vínculo da Paz. Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança." Ef 4,1-4
    Porque somos conhecedores do mais perfeito exemplo a ser seguido: "Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós Se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável perfume." Ef 5,2
    Pois só a prática da caridade nos permite verdadeiramente alcançar o dom do discernimento, que sempre é de grande importância para o ser humano, como será atestado no grande Dia do Juízo: "Peço, em minha oração, que vossa caridade se enriqueça cada vez mais de compreensão e critério, com que possais discernir o que é mais perfeito e vos torneis puros e irrepreensíveis para o Dia de Cristo..." Fl 1,9-10
    Jesus, de fato, prometeu no Sermão da montanha: "Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!" Mt 5,8
    São Paulo ainda a apresenta como o caminho da excelência: "Mas, acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição." Cl 3,14
    Assim como imprescindível qualidade para líderes e mestres, como recomendou a São Timóteo: "... torna-te modelo para os fiéis, no modo de falar e de viver, na caridade, na fé, na castidade." 1 Tm 4,12
    Ele sabe que só Deus pode fazer com que evoluamos nesse dom, como acontece com os que alcançam a santidade: "Que o Senhor vos faça crescer e avantajar em mútua caridade e para com todos homens, como é nosso amor para convosco. Que Ele confirme vossos corações e os torne irrepreensíveis e santos na presença de Deus, Nosso Pai, por ocasião da Vinda de Nosso Senhor Jesus com todos Seus Santos!" 1 Ts 3,12-13
    Citando o livro dos Provérbios, São Pedro aponta-a como a maior das indulgências: "Antes de tudo, mantende entre vós uma ardente caridade, porque a caridade cobre uma multidão de pecados (Pr 10,12)." 1 Pd 4,8
    E São Rafael Arcanjo, exaltando a Comunhão com os pobres, ensinou a Tobit e a Tobias, seu filho, sobre a caridade material: "... a esmola é preferível aos escondidos tesouros de ouro. Porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a Misericórdia e a Vida Eterna..." Tb 12,8b-9
    Mas o próprio Tobit, julgando estar em seu leito de morte, já havia repassado importantes conselhos a Tobias: "Dá esmola de teus bens, e não te desvies de nenhum pobre, pois, assim fazendo, tampouco Se Deus desviará de ti. Sê misericordioso segundo tuas posses: se tiveres muito, dá abundantemente; se tiveres pouco, dá desse pouco de bom coração. Assim acumularás uma boa recompensa para o dia da necessidade, porque a esmola livra do pecado e da morte, e preserva a alma de cair nas trevas. Para todos que a praticam, a esmola será um motivo de grande confiança diante do Deus Altíssimo." Tb 4,7-12
    Contudo, o sagrado autor dos Provérbios antes ressalta a suma importância da Comunhão com Deus: "Há muitos planos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que se realiza." Pr 19,21
    E vinculando a intenção ao amor, cravou essa luminosa máxima: "O encanto de um homem é sua caridade: mais vale o pobre que o mentiroso." Pr 19,22a
    O Eclesiástico também reconheceu: "... homens de misericórdia; as obras de sua caridade nunca foram esquecidas. Os filhos de seus filhos são uma santa linhagem, e seus descendentes mantêm-se fiéis às Alianças. Por causa deles, seus filhos permanecem para sempre, e sua posteridade, assim como sua glória, não terá fim. Seus corpos foram sepultados em Paz, seu nome vive de século em século. Proclamem os povos sua Sabedoria, e cante a assembléia seus louvores!" Eclo 44,10b.12-15
    Pregou a generosidade para com todos em carência, para nossa melhor relação com Deus: "Estende a mão ao pobre, a fim de que sejam perfeitos teu sacrifício e tua oferenda. Dá de boa vontade a todos os vivos, e não recuses esse benefício a um morto. Não deixes de consolar os que choram, aproxima-te dos que estão aflitos. Não tenhas preguiça de visitar um doente, pois é assim que te firmarás na caridade." Eclo 7,36-39
    E pela caridade para com os pais na velhice, ele garante a Divina Misericórdia: "Meu filho, ajuda a velhice de teu pai, não o desgostes durante sua vida. Se seu espírito desfalecer, sê indulgente, não o desprezes porque te sentes forte, pois tua caridade para com teu pai não será esquecida e, por teres suportado os defeitos de tua mãe, sê-te-á dada uma recompensa: tua casa tornar-se-á próspera na justiça. Lembrar-se-ão de ti no dia da aflição, e teus pecados dissolver-se-ão como o gelo ao forte sol." Eclo 3,14-17 
    Ele observa, enfim, que a Paz frequentemente transmitida é maior caridade que a material: "Filho, realiza teus trabalhos com mansidão e serás mais amado que um generoso homem." Eclo 3,19
    Com a Vinda do Cristo, a mera e indiscriminada violência, que é o extremo oposto da caridade, deve ser sistematicamente banida de nossas vidas, pois elevando as prescrições do Antigo Testamento à perfeição, Ele ensinou sobre pessoais e menores ofensas: "Tendes ouvido o que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente.' Eu, porém, digo-vos: não resistais ao mau homem. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra." Mt 5,38-39
    Assim, para verdadeiramente segui-Lo e a todos franquear a Salvação, devemos amar até mesmo nossos inimigos, e por eles rezar, como Ele exortou: "Tendes ouvido o que foi dito: 'Amarás teu próximo e poderás odiar teu inimigo.' Eu, porém, digo-vos: amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. Deste modo sereis os filhos de Vosso Pai do Céu, pois Ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e os injustos." Mt 5,43-45
    Pregou que os bens desses mundo, principalmente os amealhados em ilegalidade, sejam usados para edificar verdadeiras amizades: "Eu digo-vos: fazei amigos com a injusta riqueza, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos eternos tabernáculos." Lc 16,9


    No episódio da mulher flagrada em adultério, ato tão abominável para os antigos, Jesus, fixando o mais elevado parâmetro de isenção espiritual, simplesmente tornou inaplicável a lei que previa o apedrejamento: "Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra." Jo 8,7
    Explicou a importância de oferecer o perdão para fomentar o amor: "Jesus então lhe disse: 'Simão, tenho uma coisa a dizer-te.' 'Fala, Mestre', disse ele. 'Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro, cinqüenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou a ambos suas dívidas. Qual deles o amará mais?' Simão respondeu: 'A meu ver, aquele a quem ele mais perdoou.' Jesus replicou-lhe: 'Julgaste bem.' E voltando-Se para a mulher, disse a Simão: 'Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não Me deste água para lavar os pés. Mas esta, com suas lágrimas regou-Me os pés e enxugou-os com seus cabelos. Não Me deste o ósculo, mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar-Me os pés. Não Me ungiste a cabeça com óleo, mas esta, com perfume, ungiu-Me os pés. Por isso, digo-te: seus numerosos pecados foram-lhe perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor. Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama." Lc 7,40-47
    E numa hipérbole na qual exaltou quase que apenas seu aspecto material, Ele cita a caridade como único critério para separar ovelhas de cabritos no Dia do Juízo: "Então o Rei dirá aos que estão à direita: 'Vinde, benditos de Meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a Criação do mundo, porque tive fome e deste-Me de comer; tive sede e deste-Me de beber; era peregrino e acolheste-Me; nu e vestiste-Me; enfermo e visitaste-Me; estava na prisão e viestes a Mim.' Perguntá-Lhe-ão os justos: 'Senhor, quando foi que Te vimos com fome e demo-Te de comer, com sede e demo-Te de beber? Quando foi que Te vimos peregrino e acolhemo-Te, nu e vestimo-Te? Quando foi que Te vimos enfermo ou na prisão e fomos visitar-Te?' Responderá o Rei: 'Em Verdade, Eu declaro-vos: todas vezes que fizestes isto a um destes Meus pequeninos irmãos, foi a Mim mesmo que o fizestes." Mt 25,34-40
    De fato, Ele garantiu que cada gesto de generosidade em nome do Reino de Deus seria lembrado: "Todo aquele que der ainda que seja somente um copo de água fresca a um destes pequeninos, porque é Meu discípulo, em Verdade Eu digo-vos: não perderá sua recompensa." Mt 10,42
    E para deixar bem claro a importância de Seu Mandamento, que se tornou Sua marca, voltou a repetir em outra ocasião: "Este é Meu Mandamento: amai-vos uns aos outros, como Eu vos amo." Jo 15,12
    A despeito de todas adversidades, por fim, Ele pedia santa e tenaz persistência no amor: "Como o Pai Me ama, assim Eu também vos amo. Perseverai em Meu amor. Se guardardes Meus Mandamentos, sereis constantes em Meu amor, como Eu também guardei os Mandamentos de Meu Pai e persisto em Seu amor." Jo 15,9-10
    Expressou com todas letras como verdadeiramente podemos amá-Lo: "Aquele que tem Meus Mandamentos e os guarda, esse é que Me ama. E aquele que Me ama será amado por Meu Pai, e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele." Jo 14,21
    Relembrou o primeiríssimo Mandamento, elementar ponto da doutrina que o mundo acintosamente ignora, como essência da caridade espiritual: "Achegou-se a Ele um dos escribas que os ouvira discutir e, vendo que lhes respondera bem, d'Ele indagou: 'Qual é o primeiro de todos Mandamentos?' Jesus respondeu-lhe: 'O primeiro de todos Mandamentos é este: 'Ouve, Israel, o Senhor Nosso Deus é o único Senhor! Amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu entendimento e de todas tuas forças." Mc 12,28-30
    E assim explicou o amor do Pai pela humanidade: "Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo que lhe deu Seu único Filho, para que todo aquele que n'Ele crer não pereça, mas tenha a Vida Eterna." Jo 3,16
    São João Evangelista, nesse sentido, inspiradamente aponta Deus como fonte de todo amor: "Mas amamos, porque primeiro Deus nos amou." 1 Jo 4,19
    São Paulo faz coro: "Mas eis aqui uma brilhante prova de amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós." Rm 5,8
    Cheio de confiança, o Amado Discípulo diz: "Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele. Nisto é perfeito em nós o amor: que tenhamos confiança no Dia do Julgamento, pois, como Ele é, também nós somos neste mundo." 1 Jo 4,16-17
    A caridade, portanto, é a condição que Jesus fixou para que, através da verdadeira Comunhão entre nós, sejamos Sua Igreja: "Nisto todos conhecerão que sois Meus discípulos, se vos amardes uns aos outros." Jo 13,35
    Essa é a marca da Cruz: "Ninguém tem maior amor que Aquele que dá sua vida por Seus amigos." Jo 15,13
    Entretanto, Ele profetizou a respeito dos últimos tempos: "E ante o crescente progresso da iniquidade, a caridade de muitos esfriará." Mt 24,12

    "Confirmai na caridade Vosso povo!"